Solene, o poeta Marcelo Tápia surgiu no alto da escada de um silencioso casarão no bairro paulistano de Perdizes, usando paletó e gravata-borboleta. O terno preto sustentava delicadamente dois bottons com símbolos irlandeses: um trevo de três folhas e uma fotografia de James Joyce. Detido, Tápia, então com 63 anos, examinou o escuro recurvo da escada e invocou preocupado: “Talvez não venha muita gente por causa desse feriado prolongado.” A véspera daquela noite fria de 2017 fora dia de Corpus Christi. Diretor da Casa das Rosas e da Casa Guilherme de Almeida, ele é responsável pelo Bloomsday da cidade. “Colaboro desde 1992. O primeiro foi organizado por Haroldo de Campos em 1988.” Referia-se ao poeta e tradutor falecido em 2003, de quem era amigo. Segundo Tápia, é o evento literário mais longevo a acontecer ininterruptamente em São Paulo.
O Bloomsday é a celebração do romance Ulysses, publicado em 1922 por James Joyce, tido como um dos escritores mais complicados de todos os tempos. Apaixonado pela obra do irlandês, Tápia combate a mística em torno da dificuldade de sua leitura. “Antes de adentrar os romances mais longos e inventivos”, afirmou, “é recomendável começar pelos contos de Dublinenses, mais tradicionais, depois seguir pelo Retrato do Artista Quando Jovem.” Estava rodeado de diversas edições da obra, enquanto traçava a rota para uma aventura na metrópole joyciana. “É uma leitura inesgotável. Quanto mais referências tiver o leitor, mais a leitura vai se abrindo.”
Composto por dezoito capítulos de estilos variados que somam por volta de mil páginas, em Ulysses é narrado um dia na vida de Leopold Bloom. Estruturado em paralelo com episódios da Odisseia, de Homero (Ulisses é o nome latino do protagonista, Odisseu), a obra de Joyce é a grande aventura do homem comum de sua época. Nele, o leitor acompanha os pensamentos de Bloom enquanto ele caminha por Dublin e interage com a fauna humana da cidade. Num resumo conciso, ele acorda, toma café da manhã, vai a um funeral, é atacado na rua, ouve música, vê um nascimento, delira em um bordel, volta para casa e se deita com sua mulher. Comemora-se o Bloomsday todo dia 16 de junho, data em que se passa o romance.
“Costumávamos fazer num pub, mas não cabia muita gente”, disse Tápia, ainda receoso. Quando desceu a escada do anexo da Casa Guilherme de Almeida, viu que suas preocupações eram infundadas. A sala estava cheia. Mestre de cerimônias, ele iniciou a noite cantando a capela Molly Malone, canção que está para Dublin assim como Garota de Ipanema está para o Rio de Janeiro. Após alguns segundos, uma plateia tão heterogênea quanto os estilos de Ulysses acompanhava o anfitrião. Os joycianos batiam palmas e cantavam o refrão com vivacidade: Crying cockels and mussels, alive, alive-o. Quem não encontrou lugar bebericava uísque irlandês fora da sala.
A gênese do Bloomsday está numa festa dada pelos amigos de Joyce dois anos após a publicação do romance. A partir de 1954, treze anos depois da morte do autor, o festejo passou a ser comemorado com regularidade, primeiro em Dublin, logo nas grandes cidades no mundo. O romance, que em seus primeiros anos havia sido proibido em alguns países, já era considerado um dos mais importantes do século xx. No Brasil, a primeira celebração foi aquela mencionada por Tápia, organizada por Haroldo de Campos, que, em parceria com o irmão Augusto, traduziu excertos de Finnegans Wake, último romance de Joyce.
Parte da dificuldade da leitura de Ulysses, para muitos, está em acompanhar a torrente de pensamentos dos personagens, em vozes e estilos variados, muitas vezes abarrotados de referências obscuras e neologismos aparentemente incompreensíveis. “Existem alguns livros que podem auxiliar o iniciante em Joyce”, comentou Tápia. “Recomendo o mais recente, de Caetano Galindo.” Referia-se a Sim, Eu Digo Sim: Uma Visita Guiada ao Ulysses de James Joyce, publicado em 2016 pelo curitibano, último tradutor da obra no Brasil, cuja proposta é apresentar detalhes do romance com clareza.
A trama de Ulysses se desenrola em 24 horas, mas o Bloomsday paulistano só acabou no dia seguinte. Na noite de 17 de junho, os fãs de Joyce voltaram a se reunir, dessa vez na Casa das Rosas, uma das construções mais baixas e antigas da avenida Paulista. O homenageado agora era Finnegans Wake, romance cuja dificuldade cria barreiras até mesmo para os cultores de Ulysses. “Joyce é quase o dicionário de uma língua”, disse ao público o experiente tradutor catarinense- Donaldo Schüler, que tem 85 anos. “Enquanto um acadêmico utiliza em média 5 mil palavras em sua obra, Joyce lida com um vocabulário de cerca de 60 mil verbetes, sendo que uns 3 ou 4 mil são neologismos que ele emprega uma única vez e depois descarta.”
Finnegans Wake é a nebulosa narrativa de um casal e seus três filhos, e se passa numa única noite. O título provém de uma canção folclórica irlandesa que só não é homônima por causa do apóstrofo: Finnegan’s Wake – e devido ao tal apóstrofo ela tanto pode significar “O velório” como “O despertar de Finnegan”. Aqui foi publicado como Finnicius Revém. Na canção, que Joyce reescreve no livro, um pedreiro morre depois de cair de uma escada e quebrar a cabeça, mas ressuscita no próprio funeral após derramarem uísque sobre ele. Nesse Bloomsday, pela primeira vez no Brasil velou-se o “cadáver” de Finnicius, um boneco que jazia num caixão, diante de um barril de bebida.
Schüler, que acabava de lançar um livro sobre a loucura em Joyce, é responsável por verter para o português tanto a Odisseia como nossa única versão integral do Finnegans Wake. Assim como na tradução de Campos, em sua pena o protagonista se transformou em Finnicius, uma mescla de “fim”, “início” e “Vinícius”. Bem-humorado, sua conversa estava longe da sisudez tantas vezes associada à erudição. Ele discorria sobre Joyce com leveza: “Meu inglês é precário”, afirmou, modesto, para a estupefação dos ouvintes. “Mas não houve problema, porque o livro não foi escrito em inglês.” A linguagem utilizada no livro é uma mistura de mais de sessenta idiomas.
Você estava na Casa das Rosas ontem??
Nope. Ontem estava viajando. O texto é de 2017, mas estava travado por contrato e só agora consegui autorização para postar. Longa história. Como foi lá?
Que pena! Foi bom. Jameson com chá para quem quisesse e algumas leituras interessantes. As meninas que escreveram suas versões próprias para o monólogo da Molly mandaram bastante bem também, ao meu ver.
Ah, sempre é formidável. Rolou a Babel Joyceana, com várias pessoas lendo línguas diversas?
Sei que vc não gostou do Montano, mas já tentou o Dublinesca do Vila-Matas?
Ah, odiei Montano, mas adorei Bartleby. Nunca fui atrás de nenhum outro, vou dar uma olhada nesse então.
Por sinal, você sabe que não gosto do Montano por causa do “A declarar nada”?
Acho que vc comentou aquele dia, mas não lembro. Se quiser retomar aqui agradeço 🙂
No evento da 451?
isso