Praias infestadas por máquinas destruidoras de carne humana

A premissa do filme Tubarão (1975), dirigido por Spielberg a partir do romance de Peter Benchley, por improvável que pareça, é bastante semelhante à de Um Inimigo do Povo, peça escrita em 1882 pelo norueguês Henrik Ibsen, que foi sensação numa Europa dominada pelo teatro francês.

Em Tubarão, que é melhor que sua herança cinematográfica faz parecer, conhecemos a cidade costeira de Amity Island, que tem no turismo sua principal fonte de renda. Após um violento ataque de tubarão, o delegado Martin Brody sugere ao prefeito Hendricks que sejam interditadas até segunda ordem as praias da cidade, o que acarretaria em grande prejuízo para a população, uma vez que estavam no início da alta temporada. Após mais dois ataques, finalmente, as praias são fechadas; o público temeroso clama por vingança e o xerife parte para a caça do enorme animal.

Um Inimigo do Povo começa com praticamente a mesma história, inclusive com a envolvente presença do prefeito, da mídia, e da família do protagonista. A diferença básica é que o balneário em que vive o Dr. Stockman é atacado não por um gigantesco e assustador assassino dos mares, mas pela invisível e silenciosa contaminação da água.

A comparação entre obras e suportes tão diferentes pode parecer inusitada, quiçá esdrúxula, porém uma rápida análise em nossos medos mais íntimos revelará que tememos mais os tubarões pernambucanos que, por exemplo, a poluição que assola a Baía de Guanabara, ainda que, entre as duas, seja a última que tem mais risco de afligir seus banhistas diretamente.

Enquanto no filme de Spielberg os poucos, porém cruéis, ataques do tubarão branco traumatizam os banhistas de Amity Island, os inúmeros casos de doenças no balneário norueguês, além de detalhados relatórios científicos, em nada influem na decisão de sua população. Para evitar prejuízos financeiros, o prefeito (irmão de Dr. Stockman), os jornalistas e o povo decidem liberar o acesso à praia, e nada fazem para impedir sua contaminação. Dezenas de doentes discretamente alojados em suas câmaras escuras não carregam o apelo gráfico de uma única vítima da violência marinha.

ibsen

Mesmo em posse de documentos e argumentos que comprovam seu discurso (afinal, ele pensa apenas no bem do povo), Dr. Stockman é pressionado por quase todos da cidade a negar o problema, ainda que essa atitude ponha em risco a vida de muitas pessoas. Descobre-se que, intimamente, muitos dos habitantes concordam com ele, tendo até defendido sua proposta anteriormente; porém, após ele ser declarado inimigo do povo, ninguém tem coragem de bater de frente contra a maioria e sua discordante decisão unânime. “O partido político é uma máquina de moer carne… carne humana!”, afirma Stockman, numa metáfora semelhante à feita com o tubarão branco: “uma máquina de comer”. A mentira sobre si mesmo, e até para si mesmo, é uma das bases morais do cidadão civilizado. A peça de Ibsen é uma tradução narrativa do aforismo de Nelson Rodrigues, que afirma ser burra toda a unanimidade.

Assim, enquanto em Tubarão assistimos à luta do indivíduo contra a natureza, em Um Inimigo do Povo vemos a batalha do indivíduo contra uma sociedade egoísta, hipócrita e estúpida, definitivamente muito mais perniciosa e com potencial de destruição muito maior que o de um terrível monstro marinho engolidor de pessoas – batalha de modo algum aterrorizante, porém muito mais perturbadora.