Um diálogo desamarrado
CALEB: Morremos, mas quero morrer velho. Quer dizer, se você morre com quarenta e cinco anos e tem religião, você morre achando que que vai para o céu se reunir com seus amados. Mas não creio em nada que não vejo como possível – que a vida após a morte depende da fé, que além de ser uma boa pessoa você tem que “acreditar e servir a Deus” ou coisa parecida, para entrar no paraíso.
DAVID: Há sempre uma pedra no jardim. Essa pedra é a mortalidade, ou o mal, ou ambos (…)
CALEB: Se você é um moralista religioso, você busca soluções na religião, mas o secularista ou moralista ateu carece de absolutos. Como dizer as pessoas como serem felizes se você não consegue definir isso pra você mesmo?
Na manhã do dia 15 de junho, uma quarta-feira, finalmente cheguei em Brasília, após 80 horas de ônibus. Ao chegar, fui direto para a Cultura, perto da rodoviária, em busca da revista Serrote. Eu já falei por aqui sobre o grande prazer que é rodar por uma livraria espontaneamente, sem saber o que vai encontrar; me bati com um volume estrangeiro que se anunciava “a quarrel”. Geralmente um livro se anuncia como “contos”, “romance”, “ensaios”, “peça”, mas nunca ouvi falar de um que se anuncia como uma “uma querela, disputa, indaga, bate-boca”. Fiquei como criança birrenta em shopping center, mas me recusei a pagar os cento e poucos pilas que pediam. Tirei uma foto da capa e perguntei a uma funcionária onde estava o diabo da Serrote. Fiz outras viagens, tirei centenas de fotos com o celular, e em novembro dava uma limpa nas imagens mais antigas quando encontrei a capa de I think you’re totally wrong, de David Shields e Caleb Powell. Havia dois na Estante Virtual, por uns dez contos cada.
David é um escritor bem-sucedido que dedicou sua vida à sua arte, viveu enfurnado entre livros e queria ter experimentado mais. Caleb é seu ex-aluno, um maluco que viajou o mundo inteiro, morou em diversos continentes, se machucou bastante, experimentou de tudo, foi músico e atleta profissional, trabalhou em construções, fez família e agora se dedica, sem muito sucesso, a uma carreira literária. Em 2011 eles fizeram uma viagem para conversar abertamente sobre o que rolasse. O tópico principal seria: “priorizar a vida (Caleb) ou a arte (David)?”, mas não forçariam a conversa.
DAVID: Você é o garoto-propaganda daquela frase de Fran Lebowitz: “O oposto de falar não é escutar. O oposto de falar é esperar”. Sempre tenho a sensação de que você está só esperando eu terminar pra poder começar a falar, e na verdade não tava nem aí pro que eu disse.
O livro consiste em transcrições das conversas entre os dois, com mínimas marcações de espaço. David é mais comedido, como se calculasse cada palavra, e Caleb é provocador, pois conhece minuciosamente a obra e as opiniões de seu interlocutor, e aparentemente se preparou para confrontá-lo. Geralmente é ele quem puxa os assuntos. Como os primeiros ensaístas, eles conversam sem amarras sobre tudo quanto é coisa: receber críticas, políticas raciais, a maldade de Bush, experiências sexuais, aborto espontâneo, o amor pelas filhas, o desinteresse das esposas por suas produções, ganhar dinheiro, vegetarianismo, pena de morte.
CALEB: Quando Toni Morrison [Nobel de 1994] foi nomeada para o National Book Award e não ganhou, ela disse mesmo pra um juiz “Obrigado por arruinar minha vida”?
DAVID: De acordo com meu ex-professor, sim.
CALEB: Parece abaixo dela.
DAVID: Por que seria abaixo dela? Ela é apenas uma pessoa como qualquer outra.
A ritmo da querela é pontuada com conversas mais ordinárias, ou sobre assuntos banais que, devido ao modo como eles as desenvolvem, sempre soam interessantes. O tempo todo, por exemplo, Caleb sacaneia David por ele nunca ter trocado um pneu, e é sacaneado de volta por jamais ter publicado seus livros – uma espécie de piada interna. Discordam sobre muitas coisas, e um não tem medo de cutucar as feridas do outro, às vezes com uma sinceridade desconcertante até para eles – e mesmo assim não se ofendem – conseguem manter um diálogo interessante, inteligente e aberto.
DAVID: Escuta, Caleb. Você fez mais coisas no mundo que eu, mas eu descobri como escrever sobre ele numa voz própria. (…) É só o que sei fazer, mas isso, pra mim, é tudo. (…)
CALEB: Isso não é tudo.
DAVID: Pra mim é.
CALEB: Se isso é tudo o que você tem, não tem nada.
DAVID: Você diz isso porque não tem.
CALEB: Isso é uma coisa muito escrota pra se dizer assim, não acha?
A grande questão para David é a morte, como lidar com a ideia de que todos um dia vamos desaparecer. Um sofrimento metafísico. Caleb, por outro lado, viu o sofrimento real, e é obcecado com a dor física, tortura, genocídios, principalmente aquele perpetuado pelo Khmer Rouge no Camboja, onde ele morou.
CALEB: Um término doloroso. (…) Ela está fazendo sexo apaixonado mega-erótico. Aproveita, querida. Não me venha com sua dor. Me venha com viúvas de Cabul, me venha com os psicopatas de Krakauer, me venha com um membro do Khmer Rouge arrancando o dedo de Haing Ngor, me venha com os condenados à morte no Texas, me venha com Somaly Mam sendo comida num bordel por um ex-soldado que perdeu um olho e um braço, me venha com o amigo tetraplégico de Maggie, me venha com dor dolorosa.
Mas o mais velho nunca se deixa levar. Caleb fala tanto dos sofrimentos do mundo, que David vê naquilo uma espécie de torture porn, e cita Montaigne, que afirma que cada homem carrega em si a humana condição. Caleb não se importa com as dores dos americanos que levam uma vida confortável.
CALEB: Há certo apelo no artista que mira a contradição, um artista problemático a atormentado que procura a dor. Há uma mística, validez e até credibilidade. Você pode discordar, mas uma coisa que observei em sua escrita é que parece que você queria ter sofrido mais do que sofreu de verdade.
DAVID: Então você realmente é um mau leitor e não sabe nada de minha vida.
CALEB: Epa, epa. Eu não disse isso como uma crítica.
DAVID: Você não acha que minha obra mira a contradição?
CALEB: Sim, mas-
DAVID: Você não acha que qualquer um que vive uma vida comum tem muitos problemas e tormentos sobre os quais escrever? Você não procura a dor; a dor-
CALEB: Talvez seja isso. Talvez você esteja interessado na vida comum e eu esteja interessado nos extremos da vida.
DAVID: Quer dizer, vamos todos morrer.
CALEB: Morremos de modo diferente. Você está interessado na “mortalidade”. Eu estou interessado em assassinato.
DAVID: Todos sofremos enquanto seres humanos.
CALEB: “A dor é obrigatória. O sofrimento é opcional”.
Eles também discutem amenidades, contam piadas, falam besteira, bebem cerveja, conversam com estranhos, e isso dita o ritmo da querela. Realmente flui como uma conversa em que o leitor está presente. Eu estava para abrir uma cerveja enquanto lia. Eles caminham pelas belas trilhas de cachoeiras e minas abandonadas, fofocam sobre personalidades literárias, às vezes fazem críticas duras a livros escritos por amigos, ironizam o comportamento das suas próprias famílias, e às vezes até se contradizem (o outro nunca deixa passar). Nos alternamos: às vezes estamos com Caleb, outras com David.
Quase sempre senti falta dessa fraternidade nas discussões mais polêmicas (não necessariamente que eu tenha participado). É possível discordar com elegância. Mas pegue qualquer debate, e geralmente o que se encontrará são surdos com síndrome de Tourette gritando ofensas uns com os outros. A internet é apenas um agravante em um mundo que sempre foi assim. I think you’re totally wrong contém algo interessante sobre todas as grandes questões atuais. Não foi o melhor livro de um ano em que li três Faulkners, mas certamente foi o mais estimulante, do tipo que faz você querer acreditar na civilização, mesmo com a consciência de que isso não passa de um delírio quixotesco.
O livro não foi lançado no Brasil. Todas as traduções aqui apresentadas foram feitas por mim.