A visão personalíssima do clássico

A Barril é uma revista de artes cênicas de Salvador, editada por uma galera muito boa. Na última edição, lançada hoje mesmo, saiu um ensaio meu sobre a produção dos clássicos do teatro na capital baiana. Recomendo também a leitura dos outros textos porque, até onde pude ver, estão excelentes.johnaustenhamlet2

Uma das fontes de nossa desilusão

One day, baby, we’ll be old
Oh, baby, we’ll be old
And think of all the stories
That we could’ve told
Asaf Avidan

Não sei que estranha confiança transmito, mas as pessoas adoram me revelar intimidades e segredos. Talvez se deva ao fato de eu não saber mentir e de não sentir remorso em descascar verdades desagradáveis a meus interlocutores. O amigo de verdade nos apunhala pela frente. Nas últimas semanas também vêm me pedindo conselhos. Me transformei num guru, logo eu, such a fucked up guy. Daí que, neste setembro amarelo, recebi várias mensagens de gente que estava “na bad”. Existe no ar uma molécula cinzenta que nos contamina com essa tristeza repentina e inexplicável. Talvez seja a crise dos trinta.

O grande lance dos trinta, ao menos de quem completou junto comigo, a geração Scott Pilgrim, é que as coisas não aconteceram conforme o planejado – seríamos todos inteligentes, ricos, viajados, bem-sucedidos, amados e famosos, nossas vidas seriam interessantes. Assim nos foi vendido o futuro, seja por Hollywood, seja pelos comerciais de televisão. Antes a crise era aos quarenta: “Cheguei à metade de minha vida e o que conquistei? O que construí?” A dos trinta é bem diferente: “Saí do auge de minha vida e agora tenho responsabilidades, me sinto cansado, não há tantas portas abertas, pouco ocorreu como eu almejava, e eu só queria me divertir um pouco mais”. Na verdade, a fortuna, o sucesso, o amor e a fama não acontecem – mesmo os melhores, os genuinamente talentosos, os afortunados, os sortudos, os belos, todos precisam buscar. A maioria deles não alcança. Uns conseguem e não ficam satisfeitos. O problema nem é a desilusão, mas a fé cega que nos força a perseguir esses sonhos de todo jeito, apesar do suposto pé-no-chão atrelado à idade. A vida pune.

Se há algum benefício em mudar de década, é que as festas de aniversário são mais interessantes (não a minha, por azar) – olhamos para as fotos dos últimos dez anos e pensamos em quantas memórias e mudanças. Esperávamos que a maturidade fosse naturalmente agregada a nosso corpo, como as espinhas, os pelos e a excitação sexual, porém chegamos pós-adolescentes aos trinta – pessoas legais e irresponsáveis que aprenderam algo, não se sabe muito bem o que, mas é preciso ser muito cabeça dura para chegar aos trinta sem ter aprendido nada.

asaf-avidan

We’ll be old

Eu aprendi que um dos prazeres da velhice é exatamente revisitar os prazeres da juventude. Relembrar histórias adormecidas com amigos que não via há anos, após escutar uma canção que hoje só faz sentido por causa deles. Rever Juno e afinal concordar com uma crítica negativa lida com muita suspeita quando o filme saiu. Rever Laranja Mecânica e descobrir porque ele continua na lista de filmes favoritos. Reler “Os Precursores de Kafka” após finalmente ter conhecido boa parte dos textos que Borges menciona; Proust ao ter vivido plenamente o amor em suas facetas positivas e negativas. Reencontrar-se com uma ex sem aquela tensão que antes era um empecilho para qualquer conversa honesta, pois hoje sabemos que fazer ou entrar em joguinho é uma bobagem.

Aprendi também que é preciso conversar com as pessoas. A humanidade como um todo é uma merda, mas as pessoas são fascinantes. Entendem? Os estranhos são fascinantes; os esquisitos, os desconhecidos. A garota mais bonita da festa pode ser fascinante, mas é preciso conhecê-la. Sempre me incomodava quando uma moça legal saía com um babaca, até que parei para pensar nas vezes que fui atrás de meninas imbecis apenas porque eram bonitas, e em como as garotas interessantes devem se sentir com isso. As meninas mais lindas que conheci eram gente fina. Talvez conversar seja um problema majoritariamente masculino – os outros gêneros me parecem mais bem-resolvidos quanto a isso.

Aprendi ainda que não faz sentido tentar realizar os desejos e sonhos alheios. Como disse Kate Tempest, a poeta que mais tem a dizer hoje em dia: feel the difference between a lifestyle and a life – Sinta a diferença entre um estilo de vida e uma vida (recomendo demais vê-la recitar este poema). E aí também aprendi que muitas vezes os sonhos, mesmo os de infância, são mais fáceis de serem realizados na maturidade, porque eles também são projetos e requerem cronograma, orçamento e justificativa bem-feitas – a não ser que estejamos falando de sonhos impossíveis tais quais voar como Peter Pan ou beber o leite rosa dos Teletubbies (piada interna).

Enfim aprendi que não é ruim eventualmente sentar-se numa poltrona numa tarde de domingo. Lembro-me de um desejo compartilhado até hoje, de que nossos dias sejam todos interessantes. Quem nunca pensou numa vida aventurosa – dormir sem saber como seria o próximo dia? Vivi isso. Não saber o que você vai fazer, quem vai conhecer, o que vai comer, quanto vai gastar, onde vai dormir no dia seguinte, em que cidade, é extremamente excitante e ao mesmo tempo assustador – a longo prazo, a imprevisibilidade é o que há de mais apavorante. Há aí algum ponto de equilíbrio entre a modorra de poder prever seu dia– a segurança, a rotina –, e a abertura para as surpresas empolgantes. Acho que buscamos esse ponto intermediário, nós de trinta, e que a falta disso é uma das fontes de nossa desilusão.