Sobre guardar segredos – William Cowper

Nos meses anteriores publiquei aqui a tradução de três ensaios clássicos ingleses. Pra não falhar este mês, mando mais uma tradução. Desta vez peguei uma que faz parte de minha dissertação, o divertido ensaio de William Cowper sobre como os confidentes inevitavelmente deixam escapar os segredos que lhes são confiados. Espero que gostem. (Clique na Imagem).

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Um método comprovadamente eficaz de estimular a leitura

Na última semana fui com dois pensamentos à famigerada Bienal do Livro de Salvador. O primeiro, deveria ser óbvio, era a possibilidade de encontrar algum livro barato e imprescindível. Sempre sonhei com um saldão em que eu pudesse encontrar obras de Javier Marias e Thomas Bernhard a preço de sebo. Acontece que o pensamento, me parece, não é tão óbvio, e os livros baratos estavam amontoados em pilhas grotescas, toneladas de livros desagradáveis com as lombadas viradas para dentro, como se quisessem se esconder dos compradores. Os ratos de biblioteca e os leitores da moda haverão de concordar: não dava pra encontrar porcaria de nada. Quando sim, os descontos não valiam a pena; a Estante Virtual haverá de acabar com a Bienal, se estes livreiros não tomarem vergonha na cara. (No final das contas, miraculosamente, e falo muito sério, saí com Quando Fui Mortal, do espanhol).

O segundo pensamento, creio, foi muito mais satisfatório. Era me divertir num lançamento de uma antologia com autores vivos baianos, e de quebra ainda comer uns camarões. O livro em questão reúne dezoito escritores e foi publicado em quatro idiomas, primeiramente na Feira de Frankfurt. A seleção, como é de praxe, rendeu alguma polêmica, por parte de quem ficou de fora. Nada que não tenha acontecido com a Granta. Alguns estão tão centrados em seus umbigos que não são capazes de entender que algo maior está em jogo; a possibilidade de que talvez, finalmente, comecem a ler os baianos fora da Bahia, ou melhor, de Salvador. É um passo inicial, que pode render bons frutos não só para os autores selecionados, mas para editores, futuros escritores, pesquisadores, para o público. O que não dá é pra publicar todo mundo de uma vez, de acordo com as vontades de cada um.

Mas deixemos estas confusões de lado. O mais interessante mesmo foi um comentário que me foi feito pela celebridade João Filho (procurem por ele nos jornais da semana!), que participa da antologia: “Sim, fui à Feira de Frankfurt. Acima de tudo, se trata de negócios. Aqueles livros maravilhosos eram apenas amostras; não estavam à venda, e eu os desejava. Consegui comprar alguns, mas os expositores eram muito cautelosos. Descobri que há uma alta incidência de roubos, por parte dos alemães. Pois é. Não são só os brasileiros. Eles também roubam livros”.

O comentário era informal, mas cá discordo publicamente. A questão é que aqui se rouba de tudo – chaveiros, motocicletas, celulares, carteiras, cavalos, e até uma perna de bode congelada já roubaram de minha casa uma vez – de tudo, menos livros. Em nossos filmes mais realistas os carros são arrombados e passam a noite inteira com os livros lá dentro, intocados. É verdade. Uma vez um amigo perdeu um Saramago meu numa rodoviária e o encontrou três semanas depois, no mesmo lugar, na viagem de volta. A maneira mais segura de guardar dinheiro é dentro de um dicionário. O livro do próximo jamais haverá de ser cobiçado. Ler mais que o feed de notícias é uma atividade deveras cansativa, por estas plagas.

Mas eis que, recentemente, descobri por acaso uma maneira deveras eficaz de estimular a leitura. Tenho um primo de uns treze anos que mora numa roça longínqua no último recanto do oeste do estado, distante de qualquer estímulo cotidiano, e é um leitor voraz. Descobri na última vez que o visitei, no último natal. De lá pra cá, lhe mandei uma pilha de livros que, para desagrado de alguns, já foram todos lidos. Não sabem o que fazer com o rapaz, que pede outros constantemente, contra todas as condições possíveis. Na Bienal comprei para ele (a preço de capa) a edição de bolso da Zahar de Um Estudo em Vermelho.

Repensando o assunto, creio ter descoberto porque ele se tornou um leitor tão ávido. Quando o visitávamos, para evitar a chatice de passar quatro, cinco dias sem fazer nada (e tenha certeza que lá o tempo flui num ritmo diferente!), eu e minha irmã levávamos em média um livro para cada dia de viagem. Eu me deitava numa rede e lia até escurecer, e o menino, louco por comunicação com os primos mais velhos, brincava de ler, com um Cem Anos de Solidão de cabeça para baixo. Minha reação mais óbvia e instintiva era tomar o exemplar da mão da criança. Ele pegava meu Vathek, eu mandava me devolver; agarrava meu Sepúlveda, eu o escondia. Era um prazer proibido, restrito aos mais velhos, aos mais legais, àqueles que dominavam esta entidade secreta chamada “palavra”. Uma habilidade que ele, coitado, deve ter esperado por anos antes de dominar. Agora é sua desforra.

Portanto, bravos entusiastas, esqueçam os milhões investidos pelo governo em editais de estímulo, esqueçam as bibliotecas bonitinhas e burocráticas, esqueçam todas as utilidades práticas e ganhos relacionados à leitura – quem mais vejo fazendo discursos sobre a nobre atividade, menos lê; o importante mesmo é proibir-lhes o acesso ao livro de adultos, é dar uns tapas na mão do guri que quer abrir seu catatau sem figuras, é tomar-lhe o volume e colocá-lo em cima da geladeira, onde pode ser visto o tempo inteiro, mas jamais ser alcançado.

Devemos ressaltar que, obviamente, o método perde toda sua eficácia se a criança não observar com alguma frequência, por mínima que seja, um adulto lendo por prazer.

O Senhor do Tempo

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Não é difícil ter ouvido falar de alguma criação de Alan Moore. Muitos de seus personagens e histórias em quadrinhos foram adaptados para o cinema, entre eles V de Vingança, Do Inferno, A Liga Extraordinária, Watchmen, Constantine (originalmente um coadjuvante de O Monstro do Pântano). Aqueles que leram seus quadrinhos, apesar de ser uma legião, estão em número menor. Isso não implica em negatividade: seus fãs, com justiça, são ardorosos.

Com justiça, pois Moore é um daqueles gênios polímatas, capazes de compreender assuntos desconexos (magia, ciências, política, literatura, história, religião) e de produzir obras de qualidade em diversos suportes. Além dos quadrinhos, ele é autor de divertidas canções, de roteiros de filmes independentes (ele não tem participação nas adaptações de seus quadrinhos; na verdade, odeia os blockbusters a ponto de negar seus polpudos royalties e a aparição de seu nome nelas), e atualmente escreve seu esperadíssimo segundo romance, um catatau chamado Jerusalem, que esses dias já ia nas 500 mil palavras (só pra comparação, Ulysses, que na última tradução brasileira saiu com 1112 páginas, tem aproximadamente 260 mil palavras).

O que mais me admira em Moore, no entanto, é pegar qualquer premissa, qualquer personagem, e fazer uma obra-prima. Assim como Kubrick no cinema, Picasso na pintura, e Machado de Assis na literatura, ele também é um daqueles artistas que dominaram completamente todas as facetas de seu ofício, ao ponto de criarem maravilhas nas mais diversas técnicas e estilos. Sabemos que ele revolucionou os quadrinhos em Watchmen, ao exilar as onomatopeias e balões de pensamento, e ao sobrepor camadas de histórias, artigos, biografias, todo o material que pudesse acrescentar realismo à sua história. Mas antes escreveu clássicos com personagens como o Monstro do Pântano, o Batman e o Super-Homem, entre inúmeros outros, muitos deles anteriormente desconhecidos e rasos. Ao se desvincular com a grande indústria afirma que nunca foi um criador tão feliz (fazendo Promethea, Tom Strong, A Liga Extraordinária!). Após a leitura dos Grandes Clássicos DC, meu amigo Wesley o chamou de Midas, que transformava em ouro tudo o que tocasse.

A leitura de Writing for Comics, no entanto, mostra que por trás de tudo está não uma entidade mítica, mas um ser humano, falível como qualquer outro. Há muito esforço envolvido. Nesse longo ensaio, um dos clássicos sobre a nona arte, escrito nos primórdios de sua carreira, ele expõe os mecanismos da criação de algumas dessas histórias, e dos quadrinhos em geral. Mais importante que isso – ele não prescreve regras, e o tempo inteiro ressalta a liberdade do criador. Tanto que, num posfácio escrito vinte anos depois,  nega o seu método de criação, e o demonstra como se reinventou. Evidentemente, isso não invalida suas dicas excelentes. Ele explica, por exemplo, a quarta dimensão (o tempo) nos quadrinhos.

A situação mostrada na pintura é a representação de um mundo tridimensional que com o acréscimo do tempo se torna quadrimensional e muda de uma situação para uma história.

O acréscimo do tempo a uma imagem se faz com a inserção de outra imagem. Mais ou menos o que Giotto fazia.

Nesse ensaio, ele fala constantemente de umas histórias curtas do começo de sua carreira que eu desconhecia por completo, compiladas como Time Twisters. Muito antes do Dr. Manhattan e do menino-gênio Jack B. Quick, Moore pegou várias ideias, especialmente relacionadas com a relatividade, e as transformou em narrativas, histórias simples e perfeitamente compreensíveis. Ele não foi o primeiro a fazer isso – me lembro imediatamente de Borges, das Cosmicômicas de Ítalo Calvino e dos Sonhos de Einstein narrados por Alan Lightman.

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Em The Reversible Man vemos a história de uma vida narrada ao contrário, mas não como Benjamin Button, em que uma pessoa nasce já idosa (e com a falha de roteiro em que o bebê nasce velho, do tamanho de um bebê, mas o velho não permanece com seu tamanho ao rejuvenescer, e diminui). Na história de Moore, o tempo flui ao contrário. O protagonista anda para trás, as coisas caem para cima, e ele reflete sobre os acontecimentos gradualmente, linearmente. Num momento, ele vai à escola para esquecer matérias como química e latim. Noutro, ele, já bebê, se assusta, pois não sabe o que aconteceu aos seus filhos quando eles “desnasceram”. Um temor parecido com o da morte, que Nabokov nos antecipa de modo inesquecível:

O berço balança pairando sobre um abismo, e o senso comum nos diz que nossa experiência não passa de uma breve fenda de luz entre duas eternidades de trevas. Embora as duas sejam gêmeas idênticas, o homem, em geral, encara com mais calma o abismo pré-natal do que aquele a que se destina (a cerca de quatro mil e quinhentas pulsações cardíacas por hora). Conheço, porém, um jovem cronófobo que sentiu algo parecido com o pânico ao ver pela primeira vez filmes domésticos que haviam sido feitos algumas semanas antes do seu nascimento. Viu um mundo que praticamente não apresentava qualquer diferença – a mesma casa, as mesmas pessoas –, mas então percebeu que era um mundo onde ele não existia, e que ninguém deplorava a sua ausência. Viu de relance a sua mãe acenando de uma janela do segundo andar, e aquele gesto estranho o perturbou, como se fosse um adeus misterioso. Mas o que o deixou particularmente assustado foi a visão de um carrinho de bebê novo em folha na varanda, com o ar presunçoso e inoportuno de um ataúde; e também estava vazio, como se, naquele curso invertido dos acontecimentos, seus próprios ossos se tivessem desintegrado.

Em Dr. Dibworthy’s Disappointing Day, o cientista inventa um aparato capaz de enviar um objeto a qualquer época. Sua ideia é enviar algo ao passado, de forma que mudasse a cadeia de eventos da história, até que ele percebesse a mudança no presente. Um quadro depois, vemos o professor desapontado, pois nada havia ocorrido (no entanto percebemos as mudanças em suas roupas, nos ornamentos de seu salão, no formato de seu relógio. Ele não percebe, pois vive em sua própria cadeia de eventos). E assim vai, tentando mudar, até que chega a consequências desastrosas para toda a humanidade. O que Moore parece dizer é que não existe “e se…”, pois ao contrário da versão do tempo de Efeito Borboleta, vivemos uma dessas cadeias de eventos, desvinculadas de outras possibilidades, por mais que possamos imaginá-las, assisti-las, desejá-las. Vivemos nossas vidas, e não há muito o que fazer em relação a esse assunto.