O azulejo invertido do banheiro do posto de gasolina

Não gosto de funk, não suporto o “Despacito”, odeio pagode e sertanejo, mas conheço até bem isso tudo. Ao contrário de outros tipos de informação – como a palavra ou as imagens – que precisam do mínimo de atenção para serem captados, a música pode nos alcançar naturalmente, mesmo enquanto estamos de olhos fechados, sem pensar em nada, no fim de um cochilo fora de hora. Não que eu precise explicar, mas conheço as novidades do funk, do pagode e do sertanejo porque frequento uma academia e sou um boêmio eclético – mais fácil deixar de ir a um lugar por causa das pessoas que o frequentam que pelo tipo de música que toca nele, especialmente aqui no sertão da Bahia, um lugar surreal onde se ouve de tudo nos botecos, de jazz improvisado a thrash metal, mas em proporção desigual. Ah, vou falar logo a verdade: volta e meia me envolvo com garotas que amam tudo o que odeio. Mas a questão mesmo é que enquanto os textos e os memes hoje em dia circulam em bolhas de conteúdo, a música as estoura e acaba chegando aos ouvidos que mais as evitam. Mesmo que você goste apenas do pagodão, eventualmente escutará a “Habanera” num filme policial ou “Chop Suey” num vídeo de seu youtuber favorito.

Nenhum problema até então. Para isso existem as paredes e os fones de ouvido. E no geral isso me é benéfico, pois foi assim que descobri muitas músicas que adoro em gêneros que conheço muito pouco, como o samba, o rap, o hip hop. Mas a questão fica cabeluda quando transformam isso em imposição: pior, quando também a enfiam a política nela. O tempo corrói tudo, mas a política é mais rápida, barata e eficiente. A política corrói até a matemática. E o maior problema da polarização política é a homogeneização das pessoas. No meio dessa bagunça atual, acaba-se por supor que o cidadão de direita deve ser um branquelo rico, cristão, a favor das armas, leitor de Chesterton, contra o aborto e a maconha, e os direitos humanos, das mulheres, dos negros e de quem vai na parada gay, que tenha o cabelo curto e a barba bem-feita, que use ternos e cheire bem, jamais use vermelho, e que o esquerdista seja o oposto disso tudo.

Por causa da dissonância política, sujeitos como Rodrigo Constantino são incapazes de apreciar um gênio-vivo de nossa música, Chico Buarque. Por causa da dissonância política, sujeitos como Paulo Nogueira são incapazes de apreciar um gênio-vivo de nossa música, Lobão. Mas na verdade os extremistas são a mesma coisa. Uns fazem manifestação para impedir a exibição do documentário O Jardim das Aflições, mas acham um horror, um descalabro, uma ofensa aos direitos do cidadão, que os outros façam o mesmo para censurar a palestra de Judith Butler. Ambos são idiotas, no sentido mais intrínseco do termo, o daquele que age contra si mesmo acreditando atuar em favor próprio. Lutar pelo irrevogável direito de calar o próximo apenas atiça a curiosidade de quem não conhecia o objeto de seu desprezo. O filme é um sucesso, suponho que devido a um público de direita, mas por causa dos esquerdistas; muitos deles, afinal, só foram atrás de Butler após as tentativas de embargo dos direitistas.

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Mas eis que resolveram transformar em política a música comercial, e, de acordo com aqueles padrões de homogeneização, quem não gosta de funk é de direita, porém se você é mesmo de esquerda, deve não apenas se dispor a escutar, mas apreciar o funk em todos os seus aspectos. Aí começa o conflito, primeiro porque, bem, há muitos sujeitos de direita que adoram descer até o chão (como deve haver muito mais que nem sabem quem diabos é Chesterton); segundo porque, bem, pelo meu conhecimento dos funks, quase todos eles falam basicamente sobre armas e regiões genitais femininas, isso quando não misturam logo tudo e falam sobre bundas-granadas, ou alguma metáfora do tipo.

Aí, assim como muitos direitistas se incomodam em gostar de qualquer coisa que os esquerdistas defendem, fica difícil para um suposto intelectual feminista a favor dos direitos humanos defender as letras das músicas que os seus inimigos direitistas odeiam. Muitos deles caem numa hermenêutica ridícula para tentar explicar o valor de canções monossilábicas criadas unicamente com o propósito de entreter um público específico, já formado (e também gerar dinheiro, sucesso, likes). Repetindo, não há problema algum em criar, gostar, dançar, em suma, se divertir com a música comercial popular – meu problema é com quem tenta politizá-la com teses forçadas que tentam justificar seu valor intelectual e artístico, como se a música precisasse de uma validação acadêmica. Meu problema é com os ataques furiosos contra qualquer um que ouse questionar esses trabalhos. É a mesma “hermenêutica do assassino” de que falei em outro texto.

Mas pior ainda é quem tenta problematizá-la para que se adeque aos seus próprios valores e crenças. Dia desses li uma carta de uma jornalista a um funkeiro em que, após mencionar sua “poesia musicada”, ela propõe a alteração de um verso machista. A solução que ela oferece é mais sem sal que “Amor, I love you”. Apesar de alegar gostar de funk, o que ela propõe alterar é exatamente o que está em qualquer letra do gênero. A impressão deixada é a de alguém que afirma gostar de algo apenas para se integrar, ou em nome de uma ideia, mas não por apreciar de verdade. Nada que não encontramos às pencas na faculdade de letras e nas redes sociais. Nem precisamos checar a biografia da remetente e do destinatário para sabermos que têm origens opostas. Imaginem então como não enchem o saco de quem tem o leque de assuntos mais amplo. Concordo com Carol Bensimon, quando diz que seu compromisso é não cair nos discursos engajados, ao menos dentro de sua obra.

O resultado da politização e tentativa de justificativa acadêmica da música comercial popular é apenas um deslocamento aberrante, como um candidato a deputado que finge apreciar buchada de bode para ganhar uns votos, um ariano fantasiado de indiano para receber o cachê de uma propaganda, Antônio Prata fugindo da torcida de seu próprio time, Ronaldinho Gaúcho recebendo um prêmio da ABL, um autor de novelas da globo dar uma carteirada de intelectual-criador para desancar o político que detesta. Criticar o machismo numa letra de funk é reclamar do azulejo invertido do banheiro do posto de gasolina. Por mais que alguns cantores tentem se meter, a música comercial não tem nada a ver com ideologia política. Eu não gosto de funk, mas nada tenho contra os funkeiros. Que eles toquem a sua ladainha à vontade: bebo minha cerveja na mesa enquanto eles, na pista, balançam as suas bundas em paz.

4 pensamentos sobre “O azulejo invertido do banheiro do posto de gasolina

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